Foi de me perder no som da sua voz em áudios que chegavam sempre fazendo meu coração bater mais rápido que passei o mês de abril mergulhada numa névoa de outono: o azul firme do céu da estação parecia pouco perto do tom dos olhos que insistiam em me encarar e me faziam corar. Tudo o que existia de novo nestes mil sentimentos que o peito teimava em pulsar era também assim tão familiar: a falta de apetite, o pulmão buscando ar, beijos sem hora pra acabar, motivos tolos para falar de você e com você a qualquer momento sobre qualquer coisa. É sempre igual e sempre diferente se apaixonar.
(…)
Só é capaz de se partir o que está inteiro, concluí numa tarde no fim de maio, olhando para os cacos de fora e pensando em todos os meus estilhaços arranhando por dentro: no meu kintsugi cotidiano, ganham tintas douradas para remendar pedaços um vaso que se partiu bem no dia em que você me pediu para ter aquela conversa, um coração cansado de bater em muros, promessas interrompidas de futuro, sonhos sonhados em conjunto agora destinados a caminhar sós. Você partiu junto com um amanhã que já era aguardado, e com farelos não se pode reconstruir um amor. Onde guardo tudo o que já não cabia mais em mim? Para onde se vai todo o sentimento quando uma das partes interrompe o sentir?
O que veio a seguir foram dias de uma dor aguda e intransigente, um choro há muito reprimido e o peso de uma ausência traiçoeira que tratou de ocupar todos os vazios que foram deixados: do seu abraço onde eu cabia perfeitamente, do toque especial que eu havia escolhido para suas mensagens e fazia meu coração saltar todas as vezes em que você aparecia no meu celular, das nossas conversas de horas e horas (que no dia do nosso primeiro encontro contabilizaram sete mas se repetiram por todas as vezes que nos vimos nos meses seguintes, como se o tempo nunca fosse suficiente para o tanto que havia dentro da gente). Sentia falta da sua casa tão confortável, dos seus lençóis e toalhas sempre tão macios e limpos, de uma varanda improvisada onde batia sol pelas manhãs, das suas plantas tão cheias de vida, do tapete colorido e macio da sala e da decoração embora minimalista, afetuosa. Do silêncio acolhedor que pairava no ar cedinho, antes de você abrir os olhos – e também da música que você escolhia tocar após acordar. Do café da manhã acompanhado de canções tradicionais italianas e da Bethânia que me recebia para almoçar. A falta de uma casa da qual aos poucos me apropriei por eu ser assim sempre tão espaçosa, mas que parecia já tão redonda e resolvida que não abria fresta para caber outra pessoa – eu acomodava com timidez e cuidado o pouco que levava, como se não quisesse te incomodar, tentando me fazer pouco perceptível para que tudo o que me pertence não parecesse sempre assim tão exagerado perto de você: a altura às vezes imponente herdada do meu avô, minha transparência bem intencionada mas pouco sutil, meu entusiasmo infantil com as belezas da vida, minha vontade de (ainda) acreditar no amor. Eu da indústria criativa, você da área acadêmica, duas linguagens distintas tentando tocar a mesma nota, achar uma língua em comum. Só depois fui perceber que talvez desde o início eu vivesse com um medo silencioso de desmoronar algo muito frágil, ciente de que qualquer coisa em início de relacionamento pode gerar uma faísca de rejeição imediata: se você não notasse prontamente, quem sabe aos poucos eu pudesse ir ganhando meu espaço na tua vida, de forma constante e gradual? Ah a matemática dos amantes, tão otimista e pouco exata…! Ao tentar não ser notada, acabei jamais ganhando um canto no espelho do banheiro, uma gaveta para acomodar a vida que eu carregava nas costas por estar sempre em trânsito, qualquer quina para me apoiar que me desse uma mínima segurança de que eu não estava construindo uma história sozinha, de que não estava plantando mudas em terreno pouco fértil. A gente só enxerga o que quer ver: eu só via você sempre se esforçando para cozinhar para mim, para não me deixar sair sem tomar café da manhã ou passar o dia sem almoço ocupada com afazeres, tocando a música tema de Medianeras no violão na nossa primeira noite juntos ou mandando mensagens aleatórias ao longo do dia pra dizer que havia pensado em mim… e só foi muito tempo depois que reconheci todos os espaços em que você nunca me deixou entrar, além do seu coração: na sua vida não havia lugar para mim. O que aconteceu foi que tentar me fazer menor não foi suficiente, porque você viu que eu estava lá – e foi isso que te impediu de continuar uma história que seguiria no plural e não no singular.
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Certa vez alguém me disse que, com a nossa idade e o tipo de bagagem que todos já carregamos, cada vez que nos permitimos dar uma nova chance ao amor, é como se pisássemos numa zona de guerra — há que se ter cuidado porque há cantos destruídos que jamais serão reconstituídos, há bombas que nunca foram desarmadas, há solos inférteis demais para brotar qualquer coisa nova. Entramos na defensiva, com medo de sermos atacados novamente, sem ainda termos reconstruído nossos escombros, nos reconhecendo talvez incapazes de uma outra batalha se o que estiver em jogo for uma nova ruína.
Minha zona de guerra era um terreno abandonado há muito, mas tratado com o carinho dos que acreditam em renascimento e que plantam a esperança de dias melhores, mesmo perante a abismos. Quando você chegou, muito já havia sido restaurado, e eu consegui enxergar apenas um campo de flores ali, daquelas que esperam a estação certa para abrir suas pétalas. Eu só me preocupei em regar, e abrir espaço para a luz do sol entrar. Sua partida deixou novos abandonos, reconheço. Mas nada que a chegada da primavera não resolva.
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“Tenha coragem suficiente para confiar no amor mais uma vez
e sempre mais uma vez”
(Maya Angelou)