como assim o mundo não parou?

como assim o mundo não parou
no dia em que conversamos em silêncio
e nossas mãos se falavam por baixo da mesa
e voltei pra casa flutuando no teu sorriso
e ainda assim
minha amiga sofreu a pior violência que uma mulher pode sofrer
e meu abraço estava a uma estrada e meia de distância
e nem todo o meu choro lavou uma alma agora pra sempre marcada

como assim o mundo não parou
após meu mergulho no nosso primeiro beijo
naquela noite de céu limpo e lua clara
em que meu amigo pensou em desistir de tudo
e nem toda a vida que eu vi brilhar em seus olhos
era capaz de fazê-lo ficar

como assim o mundo não parou para eu sentir meu coração pulsando acelerado
e o seu cheiro persistente na minha boca
quando atendi minha amiga com a voz apagada
me contando da sua depressão aprofundada
e da vida tão difícil que destroça os muito sensíveis
e não consegui parar o compasso do tempo
para contar quantas horas haviam se passado desde que nos vimos pela última vez

como assim eu ainda tinha tanto amor para dar
tanto amor para viver
e as paredes ruindo ao meu redor
não foram capazes de suspender
seu desmoronamento
para eu apenas existir neste morar
para o mundo parar
para eu respirar
e amar
uma vez mais

o cheiro do céu

27/06/2003
“acordei empolgada. tinha sol, brisa morna e uma vida inteira pela frente” 

eu não sei onde foi parar esta nathalia de dezoito anos que escrevia um diário com tanta sede de romantizar a própria vida, mas leio os escritos encantada com alguém que um dia já fui e não reconheço mais. me perco naquelas páginas onde pouco me encontro tentando reviver sentimentos ali tão novos e vívidos, buscando me resgatar onde eu nem lembrava estar. muitas vezes me sinto descobrindo a vida de uma outra pessoa, talvez porque seja assim mesmo – aquela vida, um dia tão minha, há muito não existe mais. nem aquela nathalia. o futuro está no passado.

o quarto ao lado tem um aroma de ambiente recém-comprado, que alguém do marketing resolveu nomear de “céu e flor de sal”. eu nunca senti o cheiro do céu, e sal para mim é cheiro de pele pós-praia num dia quente de verão. lá no inverno de 2003, em que eu estava muito apaixonada e tão pronta assim pra vida, talvez o cheiro do céu fosse mais fresco do que é hoje – o que não quer dizer que fosse melhor, era apenas diferente. céu para mim era sempre azul, e agora não mais: vinte anos depois, aprendi a apreciar melhor os dias de céu nublado do que sabia naquela época, e talvez eu prefira o cheiro do céu em um dia “bonito pra chover” do que aqueles que parecem lavados à mão, e que agora estampam embalagens de spray para ambiente. estou voltando pra mim.

o sol de dentro nunca se põe

Cobriram todos os paralelepípedos da vizinhança, eu notei. Com o concreto puro e pesado do qual fazem asfalto: a poesia dos trajetos talvez mais difíceis de cruzar mas que nos remetem a caminhos de outras vidas agora são cobertos por um piche escuro, essa massa impiedosa que visa deixar tudo homogêneo, para as pessoas chegarem mais rápido a qualquer lugar, pra vida escapar com ainda menos cerimônia por entre os dedos, como aquela areia fininha que corre solta nas ampulhetas.

Hoje em dia contamos o tempo por outras medidas, mais precisas e pragmáticas, mas que nem por isso doem menos: os ponteiros do relógio ou os dias no calendário podem fazer tanto estrago quanto qualquer marcador de distâncias. Nosso tempo se tornou quilômetros corridos no abismo que se abriu desde a nossa última despedida, nesta contagem maluca dos corações que batem em descompasso: faz meses que nos vimos pela última vez, e o eco dos vazios é capaz de sons bem distintos.

Eu, que buscava um verso como âncora para aportar no teu silêncio, encontrei nos mares que se moviam dentro de mim uma nova direção para remar. Não me reconheço mais na pele que queimava com seu toque nem no estômago que se torcia todo só de ouvir o som do seu sorriso: num impulso implodi as estradas que me levavam até suas mãos como forma de proteger minhas fundações, e desde então não encontrei mais meu caminho de volta para o seu abraço, aquele recanto onde parecia haver espaço para o meu mundo todo. Aos poucos redirecionei minha atenção para fugir do amargor de não te ter onde achei que teria: reaprendi que as paixões podem acender chamas além da romântica, e outras descobertas me invadiram ao longo do ano como se fossem o desabrochar de uma nova estação. Não sofro mais, mas mentiria se dissesse que esqueci.

E assim a vida segue. Aos poucos chegam histórias, pessoas, destinos. Mantenho os olhos bem abertos e o peito descoberto, não ergo fronteiras nem imponho muralhas – eu não, eu quero o delírio…! Rascunho conciliações e construções, a vertigem do precipício: ter outra mão segurando a minha dizendo que é seguro mergulhar no ar, que criamos asas ao nos jogar. Este é o meu território. Eu não vim aqui para me anestesiar – quero o tombo e o recomeço, os amanhãs todos que chegam após os tropeços. Carimbos nesse passaporte imaginário de uma “vida bem vivida”, repleta de tudo o que existe de maravilhoso e de perigoso. Nem todas as manhãs são de céu azul, mas todo dia tem sol – mesmo que nem sempre a gente consiga ver. Só nos resta acreditar que ele continua lá.

esquinas de outubro

Havia projetado esse reencontro infinitas vezes em meus pensamentos e, mesmo tendo todas as condições favoráveis no dia em que ele aconteceu, ainda assim não soube lidar com o abismo que se abriu em meu peito ao te ver caminhando de surpresa em minha direção, na mesma calçada, naqueles poucos metros de distância que continham todos os meses que fiquei sem te ver. A força de um coração que cicatrizou calado no vazio do nosso silêncio me tragou antes que eu pudesse escapar, e eu não soube lidar com tudo o que desaguou naquela fração de espaço da “avenida mais movimentada da cidade” em que couberam todas as nossas possibilidades de um perdão. Eu fugi. Como fogem os covardes.

É curioso como projetamos as atitudes que teremos quando elas são tantas (im)possibilidades, e quando elas se materializam de fato acontece tudo menos o que imaginamos: meu peito ficou por horas depois retumbando uma dor que eu já havia até esquecido, mas seguia lá, adormecida: ter meu amor negado. Onde antes arderam as chamas de uma paixão que reacendeu a faísca que existia em mim, hoje havia as cinzas de uma terra arrasada. Tremi de aflição e medo e culpa, como todos que se reconhecem capazes de sentir tudo o que desloca nosso eixo, feito uma avalanche. Meus pés me desobedeceram e seguiram caminho próprio, buscando refúgio onde houvesse segurança, onde eu não pudesse me machucar de novo. A ilusão de se enxergar capaz de evitar os males maiores, como se houvesse salvação possível.

Isso já faz alguns meses, e então não mais. Continuo acreditando que você pode estar na próxima esquina de novo, e não é meu perfume favorito ou meu sorriso mais bonito que irá me proteger. Sigo caminhando a passos firmes, me distraindo com o céu e atenta a quem cruza meu caminho, abrindo o coração devagarinho para novas moradas.

Mas já não sinto mais medo: de mergulhar em abismos é que aprendemos a voar. 

um mapa até a sua mão

Nos sentamos lado a lado no salão de espera ainda vazio, aguardando a peça que começaria dali a uma meia hora, alguns andares acima. Os edifícios do Sesc, sempre tão cheios e movimentados, parecem um cenário abandonado quando já passa do horário das atividades: e era lá que estávamos, à meia luz, num daqueles sofás curvos em tom pastel. Eu fingia normalidade mas, sem que você percebesse, segurava o coração na boca, mastigava as palavras às vezes tortas e mal conseguia conter um sorriso tão solto: o peito batucava impiedoso toda aquela vontade contida de quem ainda insiste em acreditar, apesar de. Eu queria aquela euforia, como queria. Adoro estar apaixonada.

E foi ali, abraçados por aquele silêncio de um salão enorme ocupado por tantos espaços vazios, que você me contou que sua avó lhe ensinou a ler as linhas da mão. Você, cientista e das exatas, começou em tom de desculpas, “Não acredite em nada do que eu disser”. E com aquele sorriso de canto a canto (explicitando a malícia de quem talvez já tenha se acostumado a usar esse truque em outros encontros), emendou, “mas foi isso que eu aprendi”. Eu, talvez mais envolvida pelos teus olhos e pela oportunidade de tocar suas mãos do que por todo esse mistério ainda não-decifrado nas linhas da minha palma, pedi para você ler o que aqueles rabiscos queriam me dizer. Ali onde o passado, o presente e o futuro se encontram, como a nascente e a foz dos rios que só deságuam no oceano das minhas histórias já vividas ou apenas sonhadas: minha cicatriz na palma esquerda de um acidente doméstico aos nove anos, o hoje ali com o peito em chamas, o amanhã tão distante e por isso mágico. Colamos nossas mãos uma ao lado da outra e, enquanto você me explicava em qual caminho se traçava a tal “linha da vida”, qual falava sobre o amor e quantos filhos eu poderia ter, eu notei que nossas palmas tinham desenhos muito, muito diferentes. Tantos encontros cabem num desencontro, mas não existe mapa capaz de orientar um caminho que não nasceu para acontecer. Pouco depois, assistimos a peça sobre os mistérios do universo e seu beijo não me fez ver estrelas nem me restaurou um coração já tão partido, mas aqueceu um início de outono sem perspectivas de planos em conjunto, e por algumas semanas o céu pareceu sim mais azul.

Após aquele dia, tudo foi se diluindo nas demandas cotidianas, até nos tornarmos nós esse imenso espaço vazio ocupado por um silêncio. Por fim, o destino traçado nas mãos se concretizou: assim como nossas linhas que não se cruzavam, nos desencontramos e partimos sós. A vida segue como é de costume, e eu continuo a buscar paz onde ela quiser me encontrar. Que o mistério se manifeste onde a gente deixar.

vinte e três outra vez

Todo ano floresce abril, e eu queria que uma vez abril durasse o ano todo, pensei esta semana. Há um tempo comecei a catalogar as boas surpresas do mês mais auspicioso e elegi uma data aleatória que escolhi como simbólica: por diversas vezes foi o dia do santo guerreiro e do orixá justiceiro que me trouxe o maior sorriso, a aventura que deixou o estômago mais gelado, o maior brilho no olho. Por aqui, dia 23-de-abril é o dia em que mares e montanhas se movem ao meu redor, e eu me movo junto: nada fica como está, e eu percebo que podemos aprender a existir e resistir de outras maneiras.

Há dois anos ainda havia pandemia mas muita sede de futuro, e ele chegou: o dia 23 do ano seguinte foi a primeira noite que passei com alguém por quem estava muito, muito apaixonada. Caiu num dia fresco e ensolarado como a maior parte de todos os abris, e era um sábado livre, como os dias bons costumam ser. Minha barriga estava um nó só, eu não sabia o que fazer com as mãos e mal conseguia mergulhar no azul profundo dos olhos daquele que tinha todo o meu coração consigo, como um pássaro assustado que ainda não sabe usar o poder das asas que possui. Toda vez que a gente ama é como se fosse a primeira e a última. Ele tratou com cuidado essa peça delicada que exige tanto carinho e manutenção, mesmo tendo pouco tato depois, mesmo tendo sucumbido desde então. Naquele dia ele tocou violão para mim antes de dormir e de surpresa foi uma música que eu amo e que ele nem sabia que eu gostava, e boba que sou me apeguei a essas coincidências porque a gente só vê o que a gente quer. Mal sabia eu que pouco depois de um mês eu morreria como já morri tantas vezes, apenas para renascer de novo. No dia 23 de abril de 2022, o vazio em meu peito deixou de ser vazio pra sempre, até voltar a se esvaziar novamente.

Este ano dia 23 trouxe outra surpresa boa e o coração novamente borboletando possibilidades, enfim. Surpresa que começou no dia 22 e se estendeu madrugada adentro: oi, 23-de-abril, você por aqui de novo. Alguém que, da primeira vez que vi, ainda em fevereiro, descrevi como tendo “o olhar doce e o sorriso acolhedor”. Nesta nossa noite no plural ele me apresentou o universo, e eu, que não entendo de estrelas ou constelações tanto quanto sei de sonhos ou sílabas, achei uma baita viagem poder me encantar com um novo destino – literal ou figurado. Dos encontros e desencontros que a vida promove sem o menor pudor, fico com uma parte de mim que nunca deixa de acreditar, apesar de.

23-de-abril-de-2023 também era o dia em que queria ter feito meu lançamento mais aguardado e, mesmo não tendo conseguido, este ano descobri ser exatamente a data em que se celebra o dia mundial do livro, e achei providencial: o mês que jamais se cansa de me surpreender me diz nas entrelinhas que tudo está como deveria estar, se a gente assim o decide enxergar. Ah!bril

prova de vida

 

Hoje, meu coração, como a porta da frente, está aberto pela primeira vez em meses

– Raymond Carver, 1983

Após dois anos de pandemia e vida em estado de isolamento, de peito e portas trancados, sua chegada foi como o vento no fim de uma tarde quente de verão: daqueles sopros frescos que dão vontade de abrir todas as frestas e janelas para renovar o ar, arejar. Meu coração sentia que podia enfim novamente respirar, após um período de sufocamento e claustrofobia. Mas o seu, este continuava ainda trancado, esperando a próxima mudança de estação.

Reconhecer que eu não fui tua brisa de verão foi das dores que mais machucaram nos últimos tempos e, no entanto, das que mais gostei de sentir: eu estava viva. Após tanto tempo me percebendo anestesiada pro mundo e incapaz de me permitir gostar de alguém de novo, de socorro-não-estou-sentindo-nada, foram seus olhos de azul profundo que me puxaram novamente para o que era ter uma maré revolta dentro do peito: eu nunca havia desaprendido, eu estava apenas adormecida. A correnteza que nos carrega, perturba e pode afogar é também a que chacoalha e move em novas direções: eu não estava mais no mesmo lugar.

Por alguns meses ainda, o vazio ocupado pelo fim da nossa história me encarou, como uma ferida aberta que insistia em não se curar por conta própria; porque sem querer (ou por querer) às vezes tentamos acelerar o processo e arrancamos a casquinha antes da hora, atrapalhando o curso natural de cicatrização. Minha rebeldia foi te mandar mensagem dizendo, “espero que chegue o dia em que possa trazer você de volta para a minha vida sem me machucar. Espero porque aguardo, e espero porque tenho esperança”. Nunca chegamos a este lugar em que restou o carinho sem faltar o ar; mas também não sinto mais a falta que achei que sentiria. Com o fim de um relacionamento, morre uma história e também todo um mundo – não apenas uma língua, mas passado/presente/futuro compartilhados. Não tenho saudade. Acabou.

Outras civilizações vieram antes dessa, penso. E outras ainda virão e deixarão de existir. Nada na vida é garantido, assim como no amor. A única garantia de não sofrer é não viver. Mas se não vivê-lo, como sabê-lo?

Hoje meu peito se apertou novamente diante das possibilidades e foi trágico e mágico em igual medida. Como a porta da frente, meu coração se escancara para uma nova chance. Mesmo sabendo que uma ventania sempre pode derrubar tudo o que encontrar.

mar e céu

Você chegou na minha vida após a tempestade: um coração cansado de amar errado, à deriva, buscando aonde aportar. Nos conhecemos em frente ao mar e na imensidão onde os azuis se encontram, você me mostrou que havia mais, muito mais no horizonte: o infinito imenso que encaramos é também o lugar onde residem todas as possibilidades. De nos reinventarmos, de renascermos, de darmos uma nova chance. Onde nossos cacos quem sabe poderiam reconstruir um novo futuro, onde nossas rachaduras permitissem que mais luz entrasse através do nosso peito já tão partido e remendado. Você pegou na minha mão e me mostrou que talvez poderia ser diferente desta vez, mais uma vez, uma vez mais. A gente sempre quer acreditar que pode recomeçar, que não cometerá os mesmos erros novamente, apenas erros novos. Que nossa evolução permite outros tombos. Eu tive muita vontade de crer que sim. Eu permiti.

Falamos de filmes e de arte e de viagens e de novos caminhos. Nos reconhecemos nas nossas faltas e por lá ficamos: uma vez, duas, seis meses. Sua sensibilidade acima da média me encantou desde o início e me mostrava que não havia sentido sonhar se não for pra transformar: a arte é revolucionária, assim como o amor. No seu nome, mar e céu também se uniam, assim como no horizonte da cidade que nos juntou – e foi a partir dali que eu consegui me enxergar de novo: no espelho de outras águas e nas nuvens que voavam sem pressa, nos fins de tarde em diversos tons alaranjados, no cheiro do seu abraço e no gosto dos seus beijos. No que você dizia e no que escolhia não dizer. No seu silêncio cheio de significado.

Algumas histórias são feitas para durar e outras viajam ligeiras na nossa biografia. Elas vêm com um propósito específico que nem sempre notamos de imediato, embora o seu eu soubesse desde o primeiro dia: você veio soprar feridas abertas para que elas cicatrizassem sem arder; e fez com que o processo de cura fosse todo mais suave, tranquilo e, por quê não?, doce. Você chegou de leve e por sua causa eu vi flores onde era para haver um deserto. Sua partida, mansa como a chegada, deixou a sensação de peito restaurado e coração desafogado. Como o mar e o céu num dia límpido de verão. Sem previsão de chuva.

mapa de sobrevivência

“Cicatrizes são nossas histórias escritas na pele”, eu repito há muitos anos, como um mantra criado por sobreviventes que às vezes precisam se lembrar que nada como o tempo para curar tudo o que um dia já foi dor dilacerante, que já sangrou, já foi ferida aberta, mas já passou: às vezes sobreviventes também esquecemos que tudo-passa-tudo-passará, e o que um dia já pareceu doer a dor mais doída do mundo, hoje é apenas uma marca, um símbolo sagrado da passagem sábia do senhor do tempo, um traçado do passado desenhado em nós.

Um dia falamos de cicatrizes e você me disse que não tinha das que eu gosto, dessas externas que contam histórias e puxam memórias — apenas das internas. Eu me assustei achando que você falaria de traumas e coração partido, e você riu — você falava da sua hérnia. Um mês depois, você terminou comigo porque tinha “um bloqueio para seguir adiante”, você disse. Este é o problema das cicatrizes internas: na maioria das vezes demoramos a nos dar conta de que elas estão ali. Como não há pontos suturados criando cartografias para nossas dores (e curas) na pele, os caminhos para encontrá-las são muitas vezes mais longos, tortuosos e sorrateiros — há cicatrizes internas que permanecem por décadas invisíveis, em silêncio. Pelo menos as externas podemos tocar e, no seu devido tempo, celebrar como tatuagem. Feito marcas de sobrevivência.

Teve um domingo no início de maio que passamos o dia todo nos falando à distância — você na minha livraria favorita, comentando os livros que encontrava, e eu na casa dos meus pais, respondendo de volta. Os que lemos, os que queríamos ler, os que talvez teríamos escrito se nos coubesse tamanha poesia e talento. Dentre os que tinha vontade de ler, você pegou um famoso da Rosa Montero, A ridícula ideia de nunca mais te ver, e eu respondi que achava o título uma coisa (na verdade, eu coloquei um emoji de explosão, para sinalizar como o achava potente, perturbador, imenso, devastador). O que eu pensei, mas não verbalizei, era exatamente o que estava escrito ali: em como me parecia ridícula a ideia de nunca mais te ver, estando tão apaixonada do jeito que estava, com o peito em chamas. Mas há algumas semanas uma amiga comentou deste livro e me lembrei deste dia, desta história, e do tanto de descaso e desprezo que você demonstrou comigo da última vez que nos falamos, há quase dois meses. Se algum dia gostei de você assim, pouco recordo como é: agora, morando a apenas algumas quadras de distância da sua casa (que abrigou essa paixão um dia incendiária) e com a possibilidade de trombarmos a qualquer instante, peço licença a Rosa para adaptar seu título para meu novo romance: A reconfortante ideia de nunca mais te ver. Que alegria te imaginar tragado pelo precipício invisível que levou a maioria dos ex-amores que eu nunca mais fiz questão de encontrar. Uma cicatriz a mais, mas o peito em paz. Pelo menos esta é das internas.

zonas de guerra

Foi de me perder no som da sua voz em áudios que chegavam sempre fazendo meu coração bater mais rápido que passei o mês de abril mergulhada numa névoa de outono: o azul firme do céu da estação parecia pouco perto do tom dos olhos que insistiam em me encarar e me faziam corar. Tudo o que existia de novo nestes mil sentimentos que o peito teimava em pulsar era também assim tão familiar: a falta de apetite, o pulmão buscando ar, beijos sem hora pra acabar, motivos tolos para falar de você e com você a qualquer momento sobre qualquer coisa. É sempre igual e sempre diferente se apaixonar.

(…)

Só é capaz de se partir o que está inteiro, concluí numa tarde no fim de maio, olhando para os cacos de fora e pensando em todos os meus estilhaços arranhando por dentro: no meu kintsugi cotidiano, ganham tintas douradas para remendar pedaços um vaso que se partiu bem no dia em que você me pediu para ter aquela conversa, um coração cansado de bater em muros, promessas interrompidas de futuro, sonhos sonhados em conjunto agora destinados a caminhar sós. Você partiu junto com um amanhã que já era aguardado, e com farelos não se pode reconstruir um amor. Onde guardo tudo o que já não cabia mais em mim? Para onde se vai todo o sentimento quando uma das partes interrompe o sentir?

O que veio a seguir foram dias de uma dor aguda e intransigente, um choro há muito reprimido e o peso de uma ausência traiçoeira que tratou de ocupar todos os vazios que foram deixados: do seu abraço onde eu cabia perfeitamente, do toque especial que eu havia escolhido para suas mensagens e fazia meu coração saltar todas as vezes em que você aparecia no meu celular, das nossas conversas de horas e horas (que no dia do nosso primeiro encontro contabilizaram sete mas se repetiram por todas as vezes que nos vimos nos meses seguintes, como se o tempo nunca fosse suficiente para o tanto que havia dentro da gente). Sentia falta da sua casa tão confortável, dos seus lençóis e toalhas sempre tão macios e limpos, de uma varanda improvisada onde batia sol pelas manhãs, das suas plantas tão cheias de vida, do tapete colorido e macio da sala e da decoração embora minimalista, afetuosa. Do silêncio acolhedor que pairava no ar cedinho, antes de você abrir os olhos – e também da música que você escolhia tocar após acordar. Do café da manhã acompanhado de canções tradicionais italianas e da Bethânia que me recebia para almoçar. A falta de uma casa da qual aos poucos me apropriei por eu ser assim sempre tão espaçosa, mas que parecia já tão redonda e resolvida que não abria fresta para caber outra pessoa – eu acomodava com timidez e cuidado o pouco que levava, como se não quisesse te incomodar, tentando me fazer pouco perceptível para que tudo o que me pertence não parecesse sempre assim tão exagerado perto de você: a altura às vezes imponente herdada do meu avô, minha transparência bem intencionada mas pouco sutil, meu entusiasmo infantil com as belezas da vida, minha vontade de (ainda) acreditar no amor. Eu da indústria criativa, você da área acadêmica, duas linguagens distintas tentando tocar a mesma nota, achar uma língua em comum. Só depois fui perceber que talvez desde o início eu vivesse com um medo silencioso de desmoronar algo muito frágil, ciente de que qualquer coisa em início de relacionamento pode gerar uma faísca de rejeição imediata: se você não notasse prontamente, quem sabe aos poucos eu pudesse ir ganhando meu espaço na tua vida, de forma constante e gradual? Ah a matemática dos amantes, tão otimista e pouco exata…! Ao tentar não ser notada, acabei jamais ganhando um canto no espelho do banheiro, uma gaveta para acomodar a vida que eu carregava nas costas por estar sempre em trânsito, qualquer quina para me apoiar que me desse uma mínima segurança de que eu não estava construindo uma história sozinha, de que não estava plantando mudas em terreno pouco fértil. A gente só enxerga o que quer ver: eu só via você sempre se esforçando para cozinhar para mim, para não me deixar sair sem tomar café da manhã ou passar o dia sem almoço ocupada com afazeres, tocando a música tema de Medianeras no violão na nossa primeira noite juntos ou mandando mensagens aleatórias ao longo do dia pra dizer que havia pensado em mim… e só foi muito tempo depois que reconheci todos os espaços em que você nunca me deixou entrar, além do seu coração: na sua vida não havia lugar para mim. O que aconteceu foi que tentar me fazer menor não foi suficiente, porque você viu que eu estava lá – e foi isso que te impediu de continuar uma história que seguiria no plural e não no singular.

(…)

Certa vez alguém me disse que, com a nossa idade e o tipo de bagagem que todos já carregamos, cada vez que nos permitimos dar uma nova chance ao amor, é como se pisássemos numa zona de guerra — há que se ter cuidado porque há cantos destruídos que jamais serão reconstituídos, há bombas que nunca foram desarmadas, há solos inférteis demais para brotar qualquer coisa nova. Entramos na defensiva, com medo de sermos atacados novamente, sem ainda termos reconstruído nossos escombros, nos reconhecendo talvez incapazes de uma outra batalha se o que estiver em jogo for uma nova ruína.

Minha zona de guerra era um terreno abandonado há muito, mas tratado com o carinho dos que acreditam em renascimento e que plantam a esperança de dias melhores, mesmo perante a abismos. Quando você chegou, muito já havia sido restaurado, e eu consegui enxergar apenas um campo de flores ali, daquelas que esperam a estação certa para abrir suas pétalas. Eu só me preocupei em regar, e abrir espaço para a luz do sol entrar. Sua partida deixou novos abandonos, reconheço. Mas nada que a chegada da primavera não resolva.

.

“Tenha coragem suficiente para confiar no amor mais uma vez

e sempre mais uma vez”

(Maya Angelou)


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